terça-feira, 19 de maio de 2009

Sobre o tempo e a eternidade...

"Fui convidado a fazer uma preleção sobre saúde mental.Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveriaser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar para me arrepender.Percebi que nada sabia.Eu me explico.Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma.Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski.E logo me assustei.Nietzsche ficou louco.Fernando Pessoa era dado à bebida.Van Gogh matou-se.Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia.Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica.Maiakoviski suicidou-se.Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.Mas será que tinham saúde mental?Saúde mental, essa condição em que as idéias comportam-se bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado; nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, basta fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme) ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, a coragem de pensar o que nunca pensou.Pensar é uma coisa muito perigosa...Não, saúde mental elas não tinham...Eram lúcidas demais para isso.Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idosos de gravata.Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental.Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir emprego numa empresa.Por outro lado, nunca ouvir falar de político que tivesse depressão. Andam sempre fortes em passarelas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas.Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos esclarecimentos. Nós somos muito parecidos com computadores. O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interação de duas partes. Uma delas chama-se hardware, literalmente "equipamento duro", e a outra denomina-se software, "equipamento macio".Hardware é constituído por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito.O software é constituído por entidades "espirituais" - símbolos que formam os programas e são gravados nos disquetes. Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos do cérebro, os neurônios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória. Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo "espirituais", sendo que o programa mais importante é a linguagem.Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no software. Nós também.Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que se estragou.Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não funcionam.Não se conserta um programa com chave de fenda. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos, podem entrar dentro dele.Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso dos símbolos eles podem vir de poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, pastores, amigos e até mesmo psicanalistas... Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo, é sensível às coisas que o seu software produz. Pois não é isso que acontece conosco?Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos de Drummond e o corpo fica excitado.Imagine um aparelho de som. Imagine que o toca-discos e os acessórios, o hardware, tenham a capacidade de ouvir a música que ele toca e se comover.Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta e se arrebenta de emoção! Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei no princípio:A música que saia de seu software era tão bonita que seu hardware não suportou...Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de oferecer uma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, "saúde mental" até o fim dos seus dias.Opte por um software modesto. Evite as coisas belas e comoventes.A beleza é perigosa para o hardware.Cuidado com a música...Brahms, Mahler, Wagner, Bach são especialmente contra-indicados.Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Tranquilize-se há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento.Se há livros do doutor Lair Ribeiro, por que se arriscar a ler Saramago?Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais. E, aos domingos, não se esqueça do Silvio Santos e do Gugu Liberato.Seguindo essa receita você terá uma vida tranqüila, embora banal. Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, em vez de ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei, você se aposentará para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já terá se esquecido de como eles eram..."

Rubem Alves.Sobre o tempo e a eternidade.Campinas: Ed. Papirus, 1996

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Esse texto é um achado, exprime muito do que penso e sinto. E embora uma vida pensante não seja sinônimo de uma vida tranquila, ou como diz Andre Comte em seu belíssimo livro "O Amor a Solidão": embora a lucidez não anule nossa dor; ela é um caminho (ou tem sido o único caminho de Comte,o meu, o de tantos filósofos, músicos, escritores ) para amarmos a vida em sua plenitude, onde possamos então abandonar a razão (ou a verdade, ou a filosofia, ou a "balsa" com a qual atravessamos o rio).

Além da filosofia, o trecho diz muito sobre o esoterismo e a psicologia também. A "noite negra da alma", ou a "morte e ressureição", ou quantas metáforas quiserem usar para dizer o que os orientais dizem há tempos: da necessidade de nos libertar das fúteis esperanças que geralmente nutrimos, as esperanças exteriores. A esperança de um certo reconhecimento. Esperanças do ego. Há 3 possibilidades:
-Ou as aceitamos e somos os homens de gravata,
-ou as negamos parcialmente e corremos o risco de cair na bebida, ter depressão ou cortar a própria orelha,
-ou negamos até o fim, matamos o ego, destruimos a balsa, ou a ponte, e essa sim me parece uma vida plena, no amor pleno.

Para encerrar, duas frases de Maharishi:

"O jogo da vida se processa no interior, o conhecimento da vida é adquirido no interior: A ação da vida é executada no interior"
"A flor apenas desbrocha. Ela não precisa estar ciente da alegria que proporciona a todo o jardim"


Thiago Mori

6 comentários:

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  3. Único,

    Toca lá no fundo ler algo assim,
    fico feliz q o "Pistas..." esteja rendendo,
    e o texto ainda não conhecia,

    Obrigado

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  6. Thiago, sensacional o texto de Rubem Alves (um dos meus homens preferidos) e o seu texto fechando a ideia toda. Eu dou graças quando vejo alguém como você arrancando a roupa patética, desamarrotando a cara viciada das fórmulas prontas. Obrigada por proporcionar tal prazer! Um beijo enorme, escreva mais. Eu quero ler. ps: ele também poderia citar você, né?

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